Na Idade Média a vida intelectual circulava em torno dos mosteiros e das catedrais. Mesmo com o surgimento das universidades no século XIII, o ensino continuava nas mãos das autoridades eclesiásticas. Todos os grandes pensadores medievais eram bispos, padres, monges ou clérigos.
Todos eles ligados à Igreja, os filósofos medievais estavam mais interessados nas questões relativas à metafísica e à teologia. Voltados para o sobrenatural, davam maior atenção àquela parte da filosofia que trata de Deus e da sua relação com o homem e com o mundo. A fé era o pressuposto fundante e o fim de toda especulação racional. A filosofia era serva da teologia. À Igreja, a quem foi confiado primeiramente o depósito da fé (fidei depositum), o condão de ordenar toda atividade humana, inclusive no que concerne ao ensino e ao desenvolvimento do saber. Assim define a atmosfera intelectual da Idade Média Lamanna, abalizado historiador da filosofia, coligindo e arrazoando todos os aspectos por nós até aqui compilados:
Na Idade Média a vida do espírito é orientada para o sobrenatural. A existência humana é preparação para a outra vida, na qual se realiza o destino de cada um, e ela se realiza pela virtude sobrenatural da graça de Deus. A natureza é digna de interesse somente enquanto espelho no qual se reflete e se manifesta de certo modo a misteriosa e transcendente realidade de Deus, no qual ela tem seu princípio e seu fim. A Igreja é a depositária da verdade revelada e a indispensável intermediária entre a terra e o céu. Ela tem o poder de desatar; a ela compete formar as almas e ordenar toda a esfera da atividade humana, individual e social. Tal o espírito da civilização, tal a natureza do problema central da filosofia desta época: o crer é posto como condição necessária do entender; a compreensão da fé é o fim da especulação: a filosofia é ‘ancilla’ da teologia.
Ora, com o advento da modernidade muda-se o foco. A filosofia passa para as mãos dos leigos que, coerentemente com a sua própria condição, estavam mais interessados em discutir questões laicas. Importavam-lhes mais os problemas relacionados à cidade dos homens do que os atinentes à cidade de Deus. Não que negassem as questões relativas à fé, nem olvidassem o sobrenatural; a bem da verdade, o mais das vezes, a própria filosofia os levava a admitir o transcendente; contudo, não cuidavam ser por ele orientados em suas especulações racionais. À filosofia não atendia mais aceitar aqueles pressupostos que lhe eram alheios, como os artigos de fé, nem ser por eles norteados. A vida e a natureza, o homem e o universo passaram a ter um valor por si, o qual fazia com que estes fossem estudados também em si mesmos. Assim se expressa o mesmo historiador citado acima, apresentando-nos autorizado quadro do cenário moderno. Desta feita, ele compendia, com exação, os aspectos contrastantes que distinguem o homem medievo do homem moderno:
Nosso artigo tentará traçar, através de ideias-chaves, um desenho de como se deu esta tensa passagem da Idade Média à Modernidade. O primeiro passo, por assim dizer, à consecução desta transição, desencadeou-se, ainda no medievo tardio, com o advento do nominalismo construído e propalado, mormente por um mestre franciscano de Oxford, o inglês Guilherme de Ockham. O segundo desta transição deu-se na tentativa de criar um modo de pensar fundado nos pressupostos da Antiguidade clássica, ainda que buscando uma relativa harmonia com o universo cristão. É o denominado humanismo-renascentista. Entretanto, por razões que ultrapassam o escopo deste trabalho, nenhuma destas iniciativas obteve logro no que tange à aquisição de um conhecimento certo e seguro, máxime para o crivo de René Descartes. Foi, na verdade, por obra de seu gênio, que se deu a fundação da filosofia moderna. No entanto, a obra de Descartes não foi baseada em teses tão inéditas quanto se podia esperar pelos seus próprios prenúncios. Para fundar o seu sistema, nosso pensador acabou valendo-se de ideias residentes nos pensadores medievais e não sem certa incúria. Por exemplo, as pedras fundamentais do seu edifício, o cogito e o argumento ontológico, embora retomadas com intenções diversas, não deixam de remontar a autores do medievo: Agostinho (patrística) e Anselmo.
Ora, o drama e o que acarreta um pensamento que, querendo superar outro, usa de forma indevida das ideias deste outro, é o que, em suas linhas gerais, temos o propósito de perquirir neste artigo, acompanhando de perto, mas não sem certa liberdade, o enfeixe sugerido por Étienne Gilson, que propõe como base de todo o problema a metafísica, mormente a sua coroa, vale dizer, a teologia natural. Todo o nosso trabalho supõe, além das fontes, o roteiro delineado por Gilson em God and Philosophy, Deus e a Filosofia, com tradução para o português lusitano de Aida Macedo, lançado pelas Edições 70.
Seguindo esta perspectiva, teremos dois prolegômenos entre o medievo e a modernidade, a saber, a chamada Idade Média tardia, marcada, sobretudo, pela obra de Ockham, e o período renascentista, como já acenamos. Ora, tentaremos dar um panorama geral, fazendo um breve intróito do pensamento de Ockham e da renascença em geral. Desta feita, já adentrando no programa do nosso texto, prosseguiremos tentando traçar, sumariamente, um quadro do pensamento de René Descartes. Em seguida, de forma mais específica, alinharemos os principais tópicos da teologia natural de Descartes; depois, esmeramos por mostrar qual a sua influência sobre a teologia natural de Malebranche, de Leibniz e na de Spinoza. Assim sendo, esforçar-nos-emos para mostrar como o abandono da metafísica escolástica, tal como a conceberam seus autênticos autores, sobretudo a de Tomás de Aquino em sua formulação do ser concebido como ato de ser (actus essendi) ou ato de existir (actus existendi) e de Deus como Ipsum Esse Subsistens, resultou numa radical separação entre fé e razão, filosofia e teologia e filosofia e religião. E como, além disso, tudo isto redundou numa verdadeira degeneração intelectual, numa degradação para a própria história da filosofia. Não pretendemos, pois, no presente texto, elencar toda a metafísica dos autores mencionados, mas apenas destacar como o rompimento com a concepção intensiva de ser de Tomás acarretou um verdadeiro retrocesso à história da filosofia. As notas de rodapé mais ou menos extensas e os anexos que se seguem à conclusão do texto, esperam ser um adendo ou um apêndice que confirmem e justifiquem o que tentaremos esboçar e fundamentar no próprio corpo do texto: o empobrecimento da filosofia a partir da modernidade.