Étienne Gilson, historiador e filósofo, nasceu em 1884, em Paris. É considerado, com justiça, o maior medievalista do século XX: quer pela sua profícua produção, quer pela originalidade das teses que esposou, quer, finalmente, pela argúcia com que as defendeu. Gilson começou suas pesquisas sendo um dedicado leitor da filosofia moderna. Aliás, foi debruçado sobre os filósofos modernos – máxime Descartes – que descobriu o quanto estes deviam aos medievais. Sua tese de Doutorado remonta ao ano de 1913 e já assinala o seu retorno aos medievais: La Liberté chez de Descartes et la Théologie e Index Scolatico-Cartésien.
Entre os seus principais estudos, encontra-se: Le Thomisme. Introduction au Siystème de Saint Thomas D’aquin (1919) – talvez o mais importante estudo acerca da filosofia de Tomás de Aquino do nosso tempo. Já professor renomado, Gilson consigna, nesta obra, as suas aulas. Nela justifica – com grande agudeza – a sua franca preferência pelo pensamento de Tomás: seja pela clássica distinção que este faz entre essência e existir, seja por defender uma relativa, porém, verdadeira autonomia da filosofia frente à teologia. É de 1924 o seu também penetrante estudo: La Philosophie de Saint Boaventure. Nele, ao lado do conceito de filosofia autônoma elaborado por Tomás, Gilson reconhece como legítima a noção de uma filosofia heterônoma, cunhada por São Boaventura. Ainda desta fase, não podemos deixar de fazer menção ao seu perspicaz estudo da filosofia de Santo Agostinho. Introduction à L’étude de Saint Agustín é de 1929 e permanece sendo referência obrigatória para qualquer introdução ao pensamento do Doutor de Hipona.
Foram também muito celebradas as suas pesquisas de caráter mais geral sobre os pensadores medievais, dentre as quais a mais importante é L’esprit de la Philosophie Medievale, de 1932. Muito apreciada foi também a edição totalmente renovada, de 1944, de uma obra de 1922. Trata-se de La Philosophie au Mon Âge. De Scot Érigène à Guilllaume d’Occam, que se transformara em La Philosophie au Mon Âge. Dès Origines Patristiques à la Fin du XIV. Gilson faleceu em 1978.
Célebres ainda foram as suas querelas com E. Bréhier e P. Mandonnet. Com efeito, enquanto o primeiro se recusa a reconhecer nos pensadores medievais a existência de uma filosofia autêntica, visto que, na sua visão, o que determina o pensamento medieval é o dado da fé, o último julga que Gilson não tenha feito uma distinção satisfatória entre filosofia e teologia nas suas obras.
No presente artigo, procuraremos desenvolver, em suas linhas gerais, qual seja o conceito de filosofia heterônoma que Gilson defende existir no agostinismo medieval, mormente em São Boaventura. Antes de tudo, atestaremos que, para Gilson, ao lado da concepção tomásica de uma filosofia relativamente autônoma, há, sobremodo em Boaventura, a concepção de uma filosofia heterônoma. Em seguida, tentaremos delinear o conceito de filosofia heterônoma e como Boaventura o justifica a partir dos conceitos e das relações entre os conceitos de filosofia, natureza, causalidade, contingência, transcendência e sobrenatural. Por fim, teceremos as considerações finais do nosso trabalho, retomando as suas principais fases.
O texto básico do nosso artigo será a edição castelhana – a única autorizada do original francês – de La Philosophie de Saint Boaventure, no seu último e magistral capítulo: El Espíritu de San Buenaventura.