O pensamento ocidental como um todo, quanto às suas origens, remete-nos sempre aos gregos. Isto é verdade para a lógica, para a ciência, para a arte, para a política e, como bem ressalta Gilson, também para a teologia natural. Mas o que é a teologia natural? Antes de tudo, tomemos a palavra teologia. Ela vem dos termos gregos: théos= Deus e logos= estudo, palavra. Desta feita, a teologia define-se como sendo o discurso ou estudo sobre Deus. Mas por que natural? Porque, no caso, é uma ciência que se radica na razão, enquanto investiga acerca de Deus somente aquelas verdades que a razão pode demonstrar a partir das criaturas. Neste sentido, ela se distingue da “teologia sobrenatural”, que procede da Revelação, parte do dogma e excede a razão. Ora, a “teologia natural” quadra-se dentro das ciências filosóficas de Aristóteles, mais precisamente naquela ciência que ele próprio chama de filosofia primeira (philosophia proté), sabedoria (sophia) ou, ainda, de ciência teológica (theologiche epistéme). Na verdade, a teologia natural encontra-se no bojo do que depois veio a se chamar metafísica (tá metá tà physiká), e crifra-se como sendo a sua parte culminante. De fato, sendo a metafísica a ciência do ser enquanto ser, compete-lhe, mormente, a pesquisa acerca da causa do ser enquanto ser. Assim, ela alcança o seu coroamento quando demonstra a existência do próprio Ser subsistente, o único capaz de causar o ser enquanto ser. Portanto, pertence ao seu escopo, descobrir, sobretudo, Deus como existente e autor da ordem natural.
Agora bem, onde se tem a palavra Deus, tem-se quase sempre associado a esta expressão um outro termo, a saber, religião. Ora, o termo religião vem do latim religare e significa “ligar, unir”. Portanto, atende à religião ligar ou unir o homem a Deus. Destarte, pode-se arguir: na Grécia antiga, havia religião? Havia, antes de qualquer coisa, a religião mítica ou pública, procedente dos relatos e dos textos dos poetas-míticos, máxime os de Homero. Mas o que é o mito? Mondin segue a definição N. Smart: “Os mitos são histórias relativas às divindades, das relações destas com o homem e com o mundo”. Contudo, por trás destas narrativas poéticas das relações das divindades com os homens e com o mundo, há algo que deve ser destacado, vale dizer, a busca pelo princípio e causa das coisas, o que torna o mito, segundo Reale, um antecedente imediato da filosofia. Todavia, esta procura do “porquê” das coisas, no mito, era realizada de forma muito fantasiosa e não ultrapassava a esfera dos fenômenos. Como adverte Mondin, “O pensamento religioso mitológico cumpre, pois, uma função eminentemente etiológica, e não ontológica”. Desta sorte, ao pensamento mitológico pouco importava a natureza dos deuses; dedicava-se, antes, em usar as divindades para explicar as atividades humanas. De modo que, nos relativos mitológicos, “(...) há tantas divindades quantas são as atividades do homem (...)”. Ademais, importa dizer que estas divindades eram todas “(...) representadas sob a forma humana ou animal”. Por conseguinte, “No pensamento mítico há muito antropomorfismo e um antropomorfismo muito tosco”. Porém, conforme ressalta Reale, cumpre reconhecer que no mito já se manifesta a espontânea tendência humana de buscar a explicação dos acontecimentos na sua totalidade, bem como já se esboça a inclinação natural do homem para encontrar o seu lugar no universo. Por fim, é preciso não olvidar também que, na sua tentativa de explicar tanto a totalidade quanto o lugar do homem no universo recorrendo aos deuses, o pensamento mitológico foi o primeiro a “(...) dar uma ‘face’ à realidade última, à realidade divina”, embora sem rigor reflexivo.
Agora bem, por conta precisamente de esta busca ser ainda muito fantasiosa, foi ela revisada e corrigida pelos primeiros filósofos, à luz de uma racionalidade mais acurada. Sendo assim, urge dizer que “A primeira tentativa do pensamento mitológico de dar à reflexão sobre Deus uma impostação genuinamente filosófica foi realizada pelos pensadores gregos”. Neste sentido, é que Lima Vaz afirma que, não só Aristóteles, mas toda a filosofia grega é, fundamentalmente, uma teologia, ou seja, a tentativa de expressar, em termos racionais, o divino (theion), que já era contemplado na mitologia. De fato, esta reflexão sobre o divino começa com os pré-socráticos, é continuada “(...) de modo ainda confuso por Platão e, depois, de maneira mais rigorosa e sistemática, por Aristóteles”, pelo que Mondin chega a afirmar que, como Homero foi, por assim dizer, o pai da “teologia mítica”, Aristóteles foi o pai da “teologia filosófica”. Diz ele textualmente:
Além de pai da lógica, da ética e da metafísica, Aristóteles é também o pai da teologia filosófica, que ele já articula em partes fundamentais (existência e natureza de Deus) que vamos encontrar inclusive em todos os tratados posteriores.
Ora, como este processo se deu ou como ocorreu a passagem dos relatos mitológicos à teologia filosófica ou natural? Será que a reflexão filosófica conseguiu conservar concordes Deus e a religião? Será que as divindades, na razão filosófica, continuaram tendo o mesmo papel de princípio último da realidade? Então, qual a função de Deus ou o seu lugar na obra dos pré-socráticos, de Platão e de Aristóteles? Será que Ele ocupa o mesmo lugar que nas mitologias? Será, enfim, que a filosofia grega conseguiu harmonizar a sua “teologia” com a sua religião, proveniente, em parte, dos textos “poético-míticos”? Ademais: será que a filosofia, em sua origem, apresenta-se como sendo realmente uma espécie de teologia? No caso de resposta afirmativa, mister é saber: será que, de fato, ela conseguiu exprimir, com um rigor racional mais apurado, a natureza da divindade? Mais: será que ela conseguiu fazer isso sem destruir a religiosidade? Será que podemos dizer que, verdadeiramente, este era o seu objetivo precípuo? Sem embargo, supondo-se que, de fato, a filosofia nasce como uma teologia, resta-nos, no entanto, ainda outra questão: será que a filosofia, sendo uma forma de teologia, conciliava-se com a religião? Será que a explicação filosófica do mundo harmonizava-se com a da religião? Houve este acordo? Para levarmos a termo esta pesquisa, seguiremos de perto o roteiro traçado por Étienne Gilson, no seu clássico God and Philosophy, Deus e a Filosofia, com tradução para o português lusitano de Aida Macedo, lançado pelas Edições 70.
Estudaremos, em primeiro lugar, como a questão de Deus se apresenta em Tales, isto é, nos primórdios da filosofia pré-socrática. Depois, levados pela própria argumentação, buscaremos abordar a questão de Deus na mitologia grega. Neste passo, tentaremos traçar um quadro sinótico de como a mitologia e a filosofia grega se relacionam no que tange a Deus. Tal quadro abrangerá quatro questões que se complementam entre si: da parte da mitologia, abraçaremos o problema da aporia entre necessidade e vontade, que só conseguiu ser parcialmente resolvido no âmbito religioso; da parte da filosofia, procuraremos descrever como os primeiros filósofos, tentando refletir sobre as descrições mitológicas, acabam por colocar o princípio de todas as coisas (arché) em algo e não mais em divindades com formas humanas, como acontecia amiúde na mitologia; no bojo destas questões, sugeriremos uma levantada pelo próprio Gilson, a saber, como explicar a existência do homem no mundo por meio de uma coisa? Outrossim, arguiremos ainda: como pode haver uma síntese entre religião e filosofia grega, se aquela busca alguém enquanto esta procura algo? Em seguida, tentaremos expor, de forma específica e concisa, o papel de Deus na filosofia de Platão e de Aristóteles, esforçando-nos por demonstrar que, embora tenha comportado progressos notáveis, não há, na filosofia grega, uma síntese que estabeleça a concordância entre religião e filosofia. Através dos anexos, esmeramo-nos por esclarecer, ainda que de forma sucinta, algumas questões mais intrincadas ou instigantes que se encontram na esfera do assunto abordado.