O presente artigo versa acerca do tema da eudaimonia (felicidade), concebida como theorein (contemplação), na Ética a Nicômaco de Aristóteles. O texto não é um comentário literal sobre a obra do Filósofo, não tem a intenção, portanto, de exaurir sequer os temas que contempla. Na verdade, o trabalho deseja apenas destacar o que, segundo nos parece, sejam os principais movimentos lógicos do texto, privilegiando, neste enredo, os argumentos concernentes à felicidade, concebida como contemplação.
A nossa tese é clara: a ética aristotélica culmina na contemplação das coisa imutáveis e necessárias, na participação do homem na vida divina e no pensamento de Deus. Em outras palavras, há uma operação, a saber, o theorein, que começa pela intuição dos primeiros princípios, chamada nous, e se desenrola na epistéme das causas altíssimas, que Aristóteles chama de filosofia primeira, mas que, posteriormente, foi denominada de metà tà physiká, que designa, especificamente, uma epistéme que versa acerca do que vem depois da physis, que Aristóteles coloca o bem supremo do homem. Ora, esta operação, a saber, a contemplação (theorein), conquanto seja uma operação humana, isto é, realizável e adquirível pelo homem, transcende, ao mesmo tempo, a dimensão do humano, pois alcança, por assim dizer, o vértice da natureza do homem, fazendo com que ele entre no âmbito do divino, no bojo das coisas excelsas, que se encontram, pois, acima da sua natureza, já que o homem também se acha inserido na physis. Desta feita, queremos salientar que, já Aristóteles, prevê esta abertura do homem para o que o “transcende”, isto é, para as coisas divinas, e que é na realização desta operação que ele alcança a sua felicidade perfeita e, consequentemente, a atualização plena das potencialidades da sua natureza. Tanto é assim que, como veremos, acima das virtudes éticas, Aristóteles coloca as virtudes dianoéticas, e, dentre estas, a mais elevada ele denomina sapiência (sophia), posto que se ocupa das coisas divinas.
Para dar inteligibilidade ao nosso tema, teremos que tratar de alguns outros tópicos da Ética. Começaremos por situar o aspecto teleológico de toda ação humana, já que, na concepção de Aristóteles, toda ação tende para um fim. Posteriormente, tentaremos mostrar como a felicidade consiste no fim último e no bem supremo concernentes à natureza humana. Veremos, pois, que num primeiro momento, Aristóteles coloca esta felicidade dentro de uma dimensão ética e política do homem. Em seguida, passaremos ao estudo das virtudes, procurando defini-las, distinguindo-as segundo a tripartição da alma que Aristóteles nos oferece. Estudaremos, sucintamente, o que sejam e quais sejam as virtudes éticas e as virtudes dianoéticas. E será justamente no estudo da virtude dianoética da sapiência, que veremos o Estagirita, de certa forma, reavaliar a sua escala de valores e, na hierarquia dos bens, colocar a contemplação como o fim último e bem supremo de toda ação humana. Sem entrarmos nos meandros, e evitando, a todo custo, as aporias estabelecidas pelos intérpretes de Aristóteles, faremos uma análise das relações existentes entre felicidade e amizade e felicidade e prazer. Enfim, introduziremos algumas digressões no que se refere à estrutura e natureza do ato voluntário. Por fim, seguir-se-á a conclusão deste ensaio, que resultará de uma retomada dos principais resultados que constituíram esta pesquisa.
Para discorrermos sobre estes tópicos, além da Ética a Nicômaco, que, evidentemente, será o nosso texto básico, lançaremos mãos de uma bibliografia autorizada, a saber, Storia della filosofia antica, in cinque volumi, do historiador e estudioso da filosofia Giovanni Reale. Disporemos da edição brasileira – História da Filosofia Antiga: II Platão e Aristóteles – lançada pelas Edições Loyola e trazida ao vernáculo por Marcelo Perine e Henrique Cláudio de Lima Vaz. A edição da qual faremos uso remonta ao ano de 1994.
Feito este preâmbulo passemos a discorrer sobre a concepção teleológica da ação humana que Aristóteles possuía, e de como ele chega ao conceito de felicidade como fim último e bem supremo do homem