Neste ensaio vamos trabalhar a teoria conhecimento humano tomásica. Esta empresa não seria possível, se não começássemos por conhecer as potências da alma. São elas: a vegetativa, a sensitiva, a apetitiva, a locomotiva e a intelectiva. Possuem relação direta com o conhecimento, as faculdades sensitivas e a intelectiva. Por conta disso, debruçar-nos-emos sobre elas com maior afinco. E, ainda, como o que distingue os homens dos animais é o intelecto, privilegiaremos, em nossa análise, o conhecimento intelectivo.
Acerca das faculdades sensitivas, estudaremos os sentidos externos e os internos. Ademais, procuraremos distinguir os sentidos próprios do comum. Os sentidos próprios e externos são: a visão, a audição, o olfato, o paladar, e o tato. Os sentidos internos são: o senso comum, a imaginação, a estimativa e a memória. No que toca ao intelecto, cabe-nos entendê-lo em si mesmo e em sua divisão em intelecto possível e intelecto agente. Em seguida, consoante o plano da Summa Theologiae, pesquisaremos quais as principais funções do intelecto. Nisto tentaremos compreender o que seja a memória intelectual, qual o trabalho da razão e porque ela é dividida em razão superior e razão inferior, bem como o que devemos entender por inteligência e também qual é a razão pela qual a distinguimos em inteligência especulativa e inteligência prática. Por fim, a sindérese e a consciência também serão objetos deste estudo.
Após discriminarmos as potências ou faculdades da alma, passaremos, propriamente, à análise do conhecimento intelectual. A primeira coisa a se perguntar é: como o nosso intelecto imaterial conhece os corpos materiais que estão abaixo dele. Será em virtude da sua própria essência? Ou será que ele conhece todas as coisas por meio de espécies inatas? As espécies inteligíveis chegam até nós mediante formas separadas? O nosso intelecto conhece todas as coisas em suas razões eternas? Ante a negativa dada a todos os questionamentos precedentes, devemos admitir que o conhecimento intelectual começa pelos sentidos, e pode não se atualizar, salvo voltando-se às representações imaginárias.
No que tange ao modo e à ordem do nosso conhecimento, tentaremos mostrar como conhecemos as coisas materiais mediante a abstração das espécies inteligíveis – realizada pelo intelecto agente – nas representações imaginárias. A isso se segue a arguição: conhecemos estas espécies ou o objeto que elas expressam? Segundo Tomás, antes de tudo, conhecemos, pela espécie, a essência do objeto, isto é, a sua quididade (quidditas), ou seja, o que ele é (quid est). Em seguida, verificaremos que todo o nosso conhecimento é gradual e que não podemos conhecer senão por uma única espécie inteligível por vez; ademais, visto que o nosso conhecimento se dá compondo e dividindo, não conhecemos o próprio objeto senão gradualmente: primeiro, de forma indivisível, conhecemo-lo de modo confuso e indistintamente; depois, dividindo-o, conhecemo-lo de maneira clara e precisa. Quanto à apreensão da essência indivisível, temos que o nosso intelecto não pode errar acerca dela.
Depois de distinguirmos como e em que ordem o nosso intelecto conhece as coisas materiais, passaremos a analisar o que ele conhece nessas coisas materiais. Indiretamente, ele conhece os singulares, enquanto reflete sobre o seu ato e verifica que o conhecimento do universal deu-se pela abstração das espécies sensíveis, que estão nas representações imaginárias. Ademais, é certo que o nosso intelecto não pode conhecer o infinito atual ou habitual, pois as espécies inteligíveis das coisas sensíveis, que ele conhece por abstração, são representações finitas. Além disso, como só pode conhecer por meio de uma única espécie inteligível de cada vez, é-lhe impossível conhecer a totalidade das coisas com perfeição. Só o infinito potencial é-lhe cognoscível. O nosso intelecto conhece apenas indiretamente também as coisas contingentes. Pode conhecer as coisas futuras somente enquanto estas estão em suas causas. Se das suas causas procedem de forma necessária, como o calor procede do fogo, podemos conhecê-las com certeza; se delas procedem de forma contingente, como acontece com os atos que procedem da vontade deliberada do homem, podemos conhecê-las somente de forma conjectural.
Sobre o conhecimento que a alma tem de si mesma, investigaremos se ela conhece a si mesma e aos seus hábitos por sua essência, e como o nosso intelecto conhece o seu próprio ato e o ato da vontade. No que toca às coisas que estão acima da nossa natureza intelectiva, analisaremos se o nosso intelecto pode conhecer as substâncias separadas por si mesmas, e se lhe é possível conhecê-las pelas coisas materiais. Arguiremos se Deus pode ser o primeiro objeto do conhecimento humano. No que diz respeito ao conhecimento da alma separada, veremos de que maneira ela pode conhecer as coisas, e como conhece as substâncias separadas, as coisas naturais, os singulares. Investigaremos se permanecem, na alma separada, o habitus e o ato da ciência adquiridos quando ela ainda se encontrava unida ao corpo. Entre outras coisas, diremos uma palavra acerca da possibilidade de um conhecimento natural da alma separada no que concerne às coisas que acontecem neste mundo.
Agora bem, não se pode compendiar a epistemologia tomasiana sem considerar a questão do conhecimento de Deus. Como o nosso texto se restringe à filosofia, não poderemos avançar nas questões concernentes ao conhecimento sobrenatural de Deus, e nem, tampouco, na questão da visão beatífica. Entretanto, seria impossível abordar o conhecimento natural acerca das realidades divinas, sem colocar, ainda que sucintamente, o que Tomás pensa sobre o conhecimento sobrenatural das coisas divinas. Não é trato fácil empreender tal síntese, visto que Tomás trata destas questões em várias partes da sua monumental obra. Porém, há duas questões da Summa Theologiae, a saber, as Quaestiones 12 e 13 da Prima Pars, onde ele examina tais temas mais sistematicamente. A Quaestio 12 é composta de treze articulos onde Tomás desenvolve o tema do conhecimento de Deus em geral, tanto no que diz respeito à visão da glória, máxime nos dez primeiros artigos, quanto no que tange ao conhecimento que podemos ter de Deus nesta vida, nos três últimos. Na Quaestio 13, que é um prolongamento ou continuação natural da precedente, o Aquinate inquire acerca de como podemos nomear Deus a partir das suas criaturas. Esta questão é composta de 12 articulos, todos eles destinados a realizar uma “crítica” de como podemos nomear a Deus partindo das coisas sensíveis. Sobretudo os seis primeiros artigos, são de particular interesse para quem deseja entender melhor o procedimento analógico que Tomás adota no que respeita ao conhecimento natural de Deus. Frei Tomás encerra a discussão sobre os nomes divinos, posicionando-se favoravelmente quanto à possibilidade de podermos formar, acerca de Deus, proposições afirmativas. Nosso intento é dar somente um preâmbulo geral destes artigos, seguindo a mesma ordem das referidas questões.
Um estudo, ainda que introdutório sobre epistemologia tomásica, não seria completo se não abordássemos o tema da verdade, pois é no conhecimento da verdade que consiste a perfeição última do intelecto humano. Tentaremos mostrar como a verdade está, antes de tudo, no intelecto. Não no intelecto que apreende a essência indivisível, mas no intelecto que compõe e divide. Envidaremos por evidenciar que conhecer a verdade é conhecer aquilo que é, por isso a verdade é convertível ao ente; antes mesmo que o bem, a verdade é consecutiva ao ente, pois o conhecimento precede ao apetite. Deus é a própria verdade. No que se refere ao intelecto humano, há múltiplas verdades, segundo a pluralidade de coisas conhecidas. Com efeito, a verdade só é eterna no intelecto divino; no intelecto humano, a verdade não é eterna, pois este é mutável: seja porque o julgamento acerca da coisa pode mudar, seja, ainda, porque a própria coisa está sujeita à mudança.
O texto básico da nossa abordagem será a Summa Theologiae, na sua Prima Pars, quaestiones: 12 e13, 16, 78 e 79, 84 a 89.