Anício Mânlio Severino Boécio nasceu em Roma, em 470. Estudou nesta cidade, mas também em Atenas. Exerceu importantes funções, inclusive a de cônsul, sob o reinado de Teodorico, Rei dos Ostrogodos. Perseguido por seu amor à justiça, foi caluniado, exilado e cruelmente executado em 525. Boécio, depois de Agostinho, foi a maior influência da antiguidade cristã latina na filosofia medieval. Durante o seu exílio em Pavia, escreveu a sua obra-prima, o De Consolatione Philosophiae. Trata-se de um diálogo entre o autor, à espera da morte certa, e a filosofia, que vem, sob a figura de uma mulher veneranda, para consolá-lo dos seus infortúnios. Neste diálogo, Boécio interroga a filosofia sobre as agruras que ele sofre. Esta o consola no seu acérrimo cárcere, dizendo-lhe que não é nos bens exteriores que encontramos a felicidade, mas só em Deus. Por fim, ocorre a discussão acerca de como é possível conciliar a liberdade humana com a Providência divina. É disto que trata o nosso texto.
A nossa reflexão seguirá por tópicos. Antes tudo, estabelecendo que Deus, além de ser a causa de todas as coisas, é o fim ao qual todas elas tendem. Em seguida, tentaremos mostrar que é somente submetendo-se à vontade de Deus, que tudo governa, que se pode escapar às angústias causadas pelos malogros da vida presente. Posteriormente, nos dois tópicos seguintes, esforçar-nos-emos para tornar patente como este submeter-se à vontade Deus não tolhe a nossa liberdade, corolário espontâneo do nosso ser racional. Por fim, para tornar evidente como Boécio, através da distinção entre Providência e Destino, assume uma posição segundo a qual a suprema liberdade consiste precisamente em submetermo-nos à vontade de Deus, libertando-nos, gradualmente, das paixões mundanas e dos bens perecíveis, as únicas coisas que verdadeiramente nos escravizam. Após isso, passaremos às considerações finais, onde tentaremos salientar os pontos fortes e os pontos que julgamos insuficientes no argumento de Boécio.
O texto básico das nossas reflexões será o De Consolatione Philosophiae, em cinco tomos, na sua tradução brasileira – A Consolação da Filosofia – efetuada por Willian Li e editada pela Martins Fontes, em 1998. Também recorreremos ao La Philosophie au Mon Âge. De Scot Érigène à Guilllaume d’Occam (1922), na sua versão modificada – La Philosophie au Mon Âge. Dès Origines Patristiques à la Fin du XIV – de 1944. A tradução que seguiremos, no caso, será a feita por Eduardo Brandão e lançada pela editora Martins Fontes, em 1995: A Filosofia na Idade Média. Finalmente, valer-nos-emos também do compêndio História da Filosofia Cristã. Desde as Origens até Nicolau de Cusa (1951) – parceria de Gilson com Philotheus Boehner –, trazida para o vernáculo pelo Prof. Raimundo Vier, em 1970, a partir da edição alemã: Christliche Philosophie – von ihren Anfaengen bis Nikolaus von Cues (1952 a 1954).