Agostinho nunca duvidou da existência de Deus. Jamais a questão do “an est” se lhe apresentara como sendo um problema no caso de Deus. O que o inquietava era o “quid est” da substância divina. Ignorava se Deus era ou não o governador de todas as coisas; desconhecia, ademais, o caminho que nos levava a Ele. Afirma nas Confessiones:
Afirmava, além disso, ser a existência de Deus conhecida por todos os homens que gozavam do uso da razão, inclusive pelos gentios. De forma que, segundo ele, exceto por uns poucos de coração mais depravado, todos admitiam a existência de Deus como autor do mundo. Diz textualmente o Doutor de Hipona:
O nome de Deus não pode ser desconhecido de criatura alguma, mesmo dos gentios, ainda antes de acreditarem em Cristo. É tão grande a virtude da verdadeira Divindade, que não pode ser absolutamente ignorada da criatura racional que já tem uso da razão. Com exceção de poucos, nos quais a natureza se encontra profundamente depravada, todo o gênero humano proclama Deus como autor do mundo.
No Errationes in Psalmos, Agostinho refere-se a Deus como a alguém “(...) a quem ninguém consegue conhecer, e a quem não é permitido a alguém ignorar”. Ora, deveras queria frisar que, inobstante nos fosse vedado conhecer a sua substância nesta vida, a sua existência era manifesta a todos, por toda a natureza criada:
A existência de Deus não é proclamada somente pela autoridade dos livros santos, mas toda a natureza que nos cerca e à qual pertencemos, proclama que reconhece a existência de um Criador excelso.
Agora bem, se a existência de Deus é evidente a todos os homens, e se o que verdadeiramente ignoramos trata-se do que Deus seja (quid sit), fica patente que a indagação principal de Agostinho é saber o que Deus é (quid est) e não se Ele é (an est). Por conseguinte, ele não pretende, mediante uma rígida e meticulosa demonstração, provar a necessidade de Deus existir; basta-lhe chamar a atenção dos homens para o fato, assaz evidente, da Sua existência. Como dizem Boehner e Gilson, em Agostinho “Não é o nosso argumento que torna necessária a existência de Deus”. Menos que pelo rigor lógico de uma demonstração minuciosa, para Agostinho, a prova se dá por um encontro com Deus. Nem daria para ser diferente, pois estando Deus acima da razão, e não podendo o inferior julgar o superior, como poderia a razão pôr-se a afirmar a necessidade da existência de Deus. Di-lo-á o próprio Doutor de Hipona: “Eu nunca pensaria que é a razão que funda a existência de Deus e que é o raciocínio que garante que Deus deve existir”.
Tendo em conta as premissas estabelecidas acima, passaremos a seguir o Bispo de Hipona na via até Deus, por ele traçada no De Vera Religione (389 e 390). A fim de complementar a nossa exposição, arrolaremos outras disposições da mesma via arrazoada com mais pormenores no De Libero Arbitrio (395). A começar pelo De Vera Religione, após desenvolver uma reflexão fundada na fé e na autoridade, Agostinho volta-se para a razão. É o célebre esquema do intellectus fidei que está em movimento: credo ut intelligam. Como diz Gilson: “(...) nenhuma parte da filosofia agostiniana escapa do Credo ut intelligam, nem mesmo a prova da existência de Deus”. Isso não significa, porém, que ele funde a certeza da existência na fé, pois, como também acentua Gilson: “Com certeza absoluta, a razão é capaz de provar para si a existência de Deus, dado que esta verdade é conhecida pelos filósofos pagãos, ou seja, fora de toda revelação e toda fé”. No De Vera Religione, por exemplo, Agostinho quer saber “(...) até onde pode ir a razão na sua ascensão do visível ao invisível, do temporal ao eterno”.
Entretanto, antes de nos atermos a esta ascensão, cumpre investigarmos acerca do conhecimento, pois “(...) não se pode distinguir em santo Agostinho o problema da existência de Deus do problema do conhecimento; é uma única e mesma questão saber como concebemos a verdade e conhecer a Verdade”. Portanto, antes de qualquer coisa, mister é nos interrogarmos: “o que é conhecer?”. Ora, para respondermos a esta questão, urge começarmos pela teoria da sensação, que mostra a possibilidade da sensação, quem e como ela se produz e, ainda, a instabilidade dos seus objetos. Depois, será importante refutarmos os argumentos daqueles que, negando a existência de um conhecimento acima do conhecimento sensível, negam, por consequência, também a existência da certeza, fundamento de todo conhecimento. Fá-lo-emos através do cogito (Si fallor, sum), pelo qual, através da própria dúvida, Agostinho estabelece a existência da certeza, condição de possibilidade de toda verdade.
Ora, já de posse da certeza de que podemos elevar-nos da instabilidade das coisas sensíveis à estabilidade das inteligíveis mediante a certeza, passaremos, pois, a considerar a ascensão propriamente dita, do visível ao invisível, do temporal ao eterno. Com efeito, da contemplação da natureza sensível, da sua harmonia e beleza, elevar-nos-emos, através da igualdade e da unidade, fundamentos da ordem e do belo, à razão, onde reside a regra ou a medida pela qual julgamos tudo o que é belo e harmonioso.
Verificaremos, pois, que a própria razão é mutável, já que passa da ignorância à certeza, do vício à virtude; no entanto, ao mesmo tempo, a regra pela qual ela julga todas as coisas, permanece, ela própria, imutável e necessária. Por isso, da razão ascenderemos a esta regra que, por ser necessária e imutável, está acima da própria razão. Chamá-la-emos verdade. Agora bem, da verdade, enquanto regra e medida pela qual julgamos todas as coisas, ascenderemos àquele que é a fonte desta regra e medida: Deus, a própria Verdade Subsistente. Passaremos, enfim, às considerações finais.
Em forma esquemática, podemos dizer que seguiremos, com certa liberdade, a mesma ordem traçada por Gilson:
(...) a prova completa é o conjunto do movimento dialético total, que compreende: 1º dúvida cética inicial; 2º refutação da dúvida pelo cogito; 3º descoberta do mundo exterior no conhecimento sensível e ultrapassagem desse mundo exterior; 4ª descoberta do mundo inteligível pela verdade e ultrapassagem desta verdade para alcançar Deus.